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O Santosh é o empregado de mesa do restaurante George com mais pinta. Os outros são meros comparsas e olham-no de soslaio. Já o conheço  - e ele a mim – há quase  oito anos, começou então por dizer uns sins e uns nãos em Português macarrónico, a que depois acrescentou  o clássico como está, o bom dia, o obrigado e (muito) pouco mais. Sempre que entrávamos no estabelecimento e ele dava conta disso comunicava o facto ao patrão e saía Amália Rodrigues ou o rancho folclórico de Santa Marta de Portuzelo. Simpático.

No George - que fica na praça da Igreja - há comida goesa de três estalos; atrevo-me a dizer que no domínio do caril, do sarapatel, do balchão, dos croquetes é o melhor de cá. Sem grandes espaventos, mas a publicidade que faz nos sacos de plástico é absolutamente verdadeira: the best sea food always fresh. Este ano o Santosh alargou o seu vocabulário e as frases em Português: Faz muita calor. Quer gelo? Agora? Depois? Sorpatel muita bom. A lingua roasted está grande boa. Esperimenta os croquetes; nas sextas há batatshop. E os liver da galinha  também está boa. Vou oferecer-lhe, antes de voltar para Lisboa, um livrinho que já comprei e que ensina umas coisas de português, inglês e concani. O rapaz merece. Só não sei se sabe ler...

Curiosamente conheci a autora, a D. Silvette D’Sá Mesquita e a sua filha Cheryl aqui mesmo no George. Tenho em minha casa em Lisboa um exemplar que adquiri aqui há dois anos, mas o meu concani persiste em ser uma lástima. Porém, já sei dizer sim ou seja ôi e não, que é Kitlé poiça?, quanto custa? E cossó assai?, Como está? A preguiça, aliás congénita, a falta de persistência no estudo, mas, sobretudo, falta de prática ajudam a explicar o meu fracasso; mas também a Raquel não pesca nada, esqueceu o que só usava para falar com as criadas. As classes, pois claro, à mistura com as castas. No resto, era só o português. A prática mantém-se ainda hoje. Faz-me comichão, mas passa-me. E já que vou falar em militares cito o ditado calino-castrense sobre as escoriações: isso incha, desincha e passa.

No primeiro andar (aqui em Pangim e por toda a Goa há o costume dos melhores restaurantes serem nesse piso, não sei porquê) a sala tem AC – não,não se trata de ser antes de Cristo – é ar condicionado. Os preços são bem acessíveis, digo até baratos; um almoço para nós dois e um Amigo fica por cerca de dez euros, ou menos. Há por esta capital restaurantes mais caros e mais sofisticados. Desde o Motil Mahal, com um porteiro de bigodaças, até ao Aroma, passando pelo Uper House, pelo Ritz e pelo Sree Punjab. Mas, são sobretudo de cozinha indiana.


Já lá vão uns bons dias fomos almoçar ao George já citado, com o Ivo Viegas e a sua Tina já regressados a Lisboa, ou melhor a Queijas onde moram. Numas três mesas ao lado da nossa falava-se português castiço, com alguns vocábulos mais vernáculos. Averiguei quem eram os sujeitos e descobri, um tanto admirado, que tinham sido soldados no tempo dos Portugueses e até ficaram prisioneiros. Grupo patusco, bem disposto, em que se integrava também uma Senhora, esposa de um dos ex-militares. Andavam à roda dos setentas anos, mas cheios de vitalidade e boa disposição.

Conversa pra cá, conversa pra lá e deram-me os nomes e as moradas, bem como se deixaram fotografar quando lhes disse quem era e que iria publicar a sua caprichosa estória neste blogue. Enfim, tudo numa boa. O Santosh estava nas suas sete quintas e transformara-se em grafonola despejando português safável, antevendo bakshishes diversos e avultados. Explico: são gorjetas e têm origem árabe, são usadas em todos os países muçulmanos. O império dos Shah dominou a Índia e esta palavra é uma verdadeira herança.

Registei, portanto, os nomes dos visitantes. Deles aqui ficam alguns. Joaquim Isidoro Santos, da Atalaia¸ João Leocádio Gomes, Santo Antão do Tojal, Sabino Godinho Saturnino, Alpiarça, António dos Santos Neto, Montemor-o-Velho. Eram oito, mas não apontei todos. Fizeram-se umas saúdes com cerveja, uísque e gin; eu fiquei-me pela fresh lime soda, a doutora Alice Nobre não me permite mais. Desgraças... Uns estiveram presos no campo de prisioneiros de Pondá, outros em Alparqueiros. Mas todos, apesar dos transes por que passaram, unânimes: Goa é uma terra bendita, por isso aqui estão de viagem.

O Salazar ia-nos fodendo, mas o maior político foi um Senhor chamado Nerhu que impediu que fossemos trucidados. Ele, o Governador Geral general Vasalo e Silva e o patriarca D. José Alvernaz. Não fossem eles e a coisa podia ter dado um banho de sangue pois o Botas dissera até à última gota. Mas, assim, safámo-nos, os indianos não nos trataram mal, os goeses foram porreiraços, levavam-nos cigarros, comida picante e boa, sabão. Claro que não eram todos, mas eram muitos, muitos – e muitas.

Por isso aqui vinham em romagem de saudade, rever “as paisagens deste Paraíso”, reencontrar alguns velhotes amigos que ainda falam português, beber uns copos de feni e de  urraca, bebidas que não encontram em Portugal. E, quase em surdina face à satisfação deles fui perguntando o que fariam se encontrassem os seus carcereiros. “Íamos tomar umas bebidas, éramos todos militares, só que com  fardas e armas diferentes...” E, de lado, o Leocádio: “com as guerras só ganham os graúdos; os mais pequenos são sempre quem paga as favas...”.

Era tempo de despedidas, nós ficávamos eles seguiam viagem, uma peregrinação, “é tão bom voltarmos cá”. E, chiça !, só mais tarde descobriria que as fotos que tirara aos viajantes estavam mais tremidas do que se tivessem apanhado um susto. Uma merda impublicável. Entrementes, o nosso Santosh ia empochando as bakshishes, satisfeito da vida, um maná em rupias não cai do céu todos os dias. Homem bons os portugueses, vem mais e eu muito bem do dinheiro. Lá fora, o calor aperta. A igreja branqueia no alto da sua escadaria. A malta da pesada, ou seja o nosso grupo, na cerveja, no uísque e no gin tónico. E eu a fresh lime soda. Porra! A vida está cheia de injustiças.  

SÁBADO, 29 DE MARÇO DE 2014

GRALHAS SEM GRALHAS - O Senhor Sabe Tudo

Por Antunes Ferreira

É uma sala recheada de mobília indo-portuguesa, um aparador precioso, cadeirões magníficos, uma espreguiçadeira desenhada pelo Senhor que me recebe e veste, descontraído, calções e camisa de manga curta, É toda desmontável, esclarece, com uns poucos parafusos, basta desenrosca-los e já está, mandei doze ou treze para Portugal, vêm cá goeses de férias e pedem-me para as encomendar e enviar. As recordações vogam por ali, reflectidas nos quadros que povoam as paredes. Uma osga, plácida e imóvel, espera talvez mosquito para o pequeno-almoço.


Um brasão do Estado Português da Índia também está pendurado numa delas. Ontem e hoje misturam-se sem brigar com imagens de Santo António e Ganeshes; convivem. Com o Holi a rapariga deixou-me a comida já feita, vou vivendo sozinho até que desça à tumba. E não me aborreço, tenho sempre coisas para fazer, não posso estar parado. Lá fora o barulho, os tambores, a gente pintada de várias cores, da cara ao vestuário, sem esquecer o cabelo, brincando, berrando, pulando, é um dia especial, o Carnaval hindu, meio pagão meio santo, enquanto a bebedeira não toma conta dos foliões. É o Holi e está tudo dito.


Percival Noronha já fez 90 anos, confessa-o sorrindo, mas está de memória perfeita, explanação clara, desfia anos como quem desfolha as pétalas do malmequer, bem-me- quer, finta o tempo, sabe tudo, A Raquel é filha do director da Alfândega, o Carlos Melo, bom homem, competente na Raia, tinha uma bela casa de família agora reconstruída mas já não é que era. Conta as contas do rosário goês, conhece as famílias, enfim, as suas desditas e por aí fora: é omnisciente e omnipresente, um deus enraizado na terra. Ouço-o desbobinar a História e apenas lhe faço uma que outra pergunta. Responde logo. Um espanto!


Quem me levou à casa dele, nas Fontaínhas, a Alfama de Panjim, foi o Zito Menezes, médico aposentado, sportinguista ferrenho, bué da fixe, de quem já falei noutras ocasiões. Foi colega da Raquel durante os sete anos do Liceu Nacional Afonso de Albuquerque e conhece perfeitamente Percival. Aliás, falou-lhe na semana passada da nossa visita ao que ele acedeu, Gosto de receber pessoas, de falar com elas e nós a ouvi-lo, a Raquel também alinhou na visita, quase não respiro face ao que ouço e vejo.


O Senhor desculpe-me, estou um tanto surdo, e puxa a orelha para ouvir melhor, o ruído dos holiões é catastrófico, mas mesmo assim, vai relatando o que aconteceu no tempo dos Portugueses e depois. Caso elucidativo que desmente a versão criminosa posta a circular no tempo salazarento. Recordo a declaração do ministro da Presidência Correia de Oliveira, aliás o Correio do Oliveira como então dizíamos na galhofa. Segundo ele, tinham morrido três mil e mais umas centenas de militares na defesa do solo sagrado da Roma do Oriente, a Pátria fora miseravelmente atacada e conquistada pela invasão das tropas indianas do pandita, o que era igual a bandita, bandido.


O Diário de Notícias publicou em caixa a mentira do regime. E também referiu o bombardeamento dos depósitos de combustíveis em Vasco da Gama, com incontáveis baixas na população. Estava-se a 22 de Dezembro de 1961, eu começara a namorar com a Raquel em 22 de Agosto e pude acompanhar os dias de angústia que ela vivia. Os seus pais e cinco irmãos moravam ali. Podiam estar todos mortos, de acordo com os noticiários falsos e os comentários pseudo-patrióticos que circulavam.


Foi então que me lembrei de recorrer aos meus amigos e vizinhos no Bairro do Restelo, os Solano de Almeida, cujo pai, comandante dos TAIP, Transportes Aéreos da Índia Portuguesa, cometera o feito de descolar com o seu Douglas DC 4, da pista bombardeada do aeroporto de Dabolim. Tinha demonstrado uma perícia, um sangue-frio e um destemor realmente notáveis. Na casa dele e depois de eu ter explicado ao que vinha, o piloto informou-me das mentiras que circulavam em  Portugal e que até conhecia os meus futuros sogros, encontrando-se a família de perfeita saúde. Não gostava do regime salazarento, sabia. Claro que a Raquel passou o Natal muito mais sossegada. E eu também.


Agora e aqui, Percival  limita-se a concordar: foi mesmo assim. Pergunto-me quem é este homem de saberes imensos, cronista, viúvo, orador, combatente de muitas causas, repositório vivo de noventa anos de História, completados em 22 de Junho do ano passado? Recorro a notas biográficas publicadas no semanário “Goan” em inglês e por mim adaptadas em Português. Tenho de agradecer à publicação, de outro modo teria de encher-me de paciência para seleccionar dados sobre ele, tantos são os que existem. O que em férias seria de criticar e de eu ser considerado, pelo menos, maluco…


 “Percival não é um cronista do passado, ele é o passado, Em 1961, quando a Índia recuperou Goa, ele era funcionário, tendo chegado a Chefe do Gabinete de Informação, que reportava directamente ao último Governador Português, Vassalo Silva, com quem viajou por inúmeras vezes para Damão e Diu. A sua tranquila eficiência e capacidade de elaborar e aplicar regras, fê-lo osubir na hierarquia sob o Governo indiano tornando-se chefe do Protocolo Oficial no final dos anos setenta e, em seguida, subsecretário de departamentos-chave - saúde, indústria, informação e turismo.

 Realmente continua a ter um talento especial, com raízes ancestrais nas aldeias de S. Matias em Mala de onde veio sua mãe Aurora Vital e Noronha  e Loutolim, a vila de seu pai Antonio José de Noronha. Este partiu para o Uganda com Percival, então quase bebé, e voltou em 1929, quando  tinha sete anos; deu entrada no Liceu para completar a sua escolaridade”.

 Durante a nossa conversa apontou a herança de Goa que se encontra em ruínas. Posso dizer que Percival é a herança que ainda está de pé, e sublinha que os arquivos de Goa estão a perder-se e em estado decadente, bem como os edifícios antigos que não foram persevados. Mas, perante o seu saber e a sua lucidez, ele continua a ser um arquivo permanente que acentua como Goa desliza em plano inclinado e se torna uma sombra do seu passado.

 Saio da casa de Percival no bairro das Fontaínhas perfeitamente esmagado; alias, saímos os três, o Zito, a Raquel e eu. Descemos os degraus que nos tinham levado ao primeiro andar e lá em cima Percival como bom anfitrião despede-se, acenando cordialmente. Pede-me para voltar, tem um livro para me oferecer. Claro que voltarei. Na parede do cimo do patamar da escada tem uma roda de madeira também trabalhada. É a última informação que nos dá, trata-se de uma peça que mandou fazer e é uma reprodução das que em pedra fazem parte de templos hindus que são carros.

 Cá fora os foliões hindus bem pintados continuam a  carnavalar o Holi. Por toda a Goa este é um dia especial e feriado, as lojas fecham e, singularmente apenas umas quantas de hindus se mantêm abertas. No resto da Índia também. Nas Fontaínhas, bairro castiço, onde os habitantes são particularmente católicos, de cultura e tradições lusas, estes festejos vão durar todo o dia, parando apenas amanhã que é dia de trabalho. Três moças, alias bem bonitas, perguntam-nos sorridentes se nos deixamos pintar. Faço um gesto evasivo, mas respondo-lhes um não, também sorrindo. Soltam gargalhadas cristalinas e berrantes como os saris que usam – e afastam-se. Goa  também é   isto.

QUARTA-FEIRA, 12 DE MARÇO DE 2014

'Deu borem dis dium'



Por Antunes Ferreira
Deu borem dis dium. Ou seja, bom dia, em concani.

NA MINHA casa ouve-se o mar, as ondas marulhando a uns duzentos metros, ou seja quase aqui à porta. No quintal mesmo ao lado cresce um coqueiro – olha que novidade – uma árvore que dá pão, uma pãozeira, portanto, uma mangueira e muitas buganvílias. Nuns trezentos metros da minha rua, caso curioso, existem três cabeleireiros, um dos quais unissexo, dois restaurantes, um bar, três ourives, duas agências bancárias, um consultório médico e uma farmácia. Só falta a loja do caju. Mas, não se pode ter tudo. Para todos os gostos, enfim. Frutas pão e mangas ainda não estão prontas como aqui se diz, em vez de maduras que nós usamos em Portugal.
A propósito, abro aqui uma parentética para dar conta de episódio ocorrido em Luanda, quando estávamos por lá. A Raquel tinha tido os partos do Miguel e do Paulo em Lisboa, na clínica de São Miguel, sob o cuidado atento do Prof. Castro Caldas e o acompanhamento posterior pelo primo e padrinho de casamento, Prof. Mário Cordeiro, aliás primo da minha consorte e pediatra de mão cheira. Recordo que fora, em casa dele que tinha descoberto a miúda que viera de Goa alegadamente para estudar na Faculdade de Ciências: Mas, creio que me caçar e depois casar.
Então, na capital angolana onde tínhamos produzido o terceiro descendente ou terceira, na altura não havia ecografias, e quase findos os nove meses habituais, fomos no carrito que comprara, um pequenino Mitsubichi Colt (anos de colonialismo já me tinham permitido entrar pelo desvario…) à Casa de Saúde do SNECIPA onde o/a rebento/a viria ao Mundo. Enquanto a mina consorte – tinha casado comigo, daí o nome – subia ao primeiro andar para mirar a enfermaria, eu ficara no minúsculo boguinhas acompanhado dos dois primeiros infantes: o Miguel com cinco anos e o Paulo com três.
O primogénito era desde sempre o mais crédulo e ingénuo, o seguinte caracterizava-se pela esperteza um tanto saloia, mandando bocas aqui e ali e contestando quase sempre as normas maternas e paternas. E foi o Miguel que me perguntou, ó Pai, onde foi a mãe?, ao que respondi (estávamos ainda nos anos sessenta) que a mãe tinha ido ao local onde iria buscar o mano. Silêncio. Desceu a Raquel com umas trombas elefantinas. É mau? Perguntei-lhe. É péssimo. Nisto, o Miguel, ó mãe então o mano? E o Paul, galharda e convictamente, não vês que ele ainda não estava pronto!!! Fecho o parêntesis.
Voltando à minha rua; é por ela que se chega à praia de Miramar, daí os murmúrios do  Índico. Passa-se pelo colégio Dhempé, antes Dempó, uma enorme instituição mandada construir pelo magnata do mesmo nome. Rapazes e raparigas de todas as classes, desde a primária até aos cursos superiores são fotocópias de todos os estudantes do orbe terráqueo; a mochila é fundamental. E os namoricos vão aumentando, ao invés do que se passava no antigamente.
No fundo da rua – aqui é road em vez de street – está plantado um templo hindu, moderno, onde para as pessoas entrarem têm de se descalçar. O mesmo acontece nos consultórios de médicos hindus, escritórios de advogados e outros. Fui ao estaminé do Dr. Ashish Surlenkar onde ouvi uma estória para dar que pensar, eu conto, o clínico é uns anos mais velho do que a Raquel e conversoucom[HAF1] igo num Português escorreito.
Tinha lá ido por via de um problemazito intestinal, nada de grave, e depois ficámos a conversar e fiquei sabendo que ele completara o curso na Escola Médica de Goa e pretendia depois ir para Lisboa fazer uma série de cadeiras para a equiparação, “quando aconteceu aquilo, a libertação , como aqui dizem…” Pasmei. Da boca de um hindu ouvir uma tal frase, 53 anos depois dos acontecimentos de Dezembro de 61, deixou-me espantado; mas calei-me e começámos a falar do Benfica, como bom sportinguista retorqui-lhe, rimo-nos – e não me cobrou  a consulta , aliás seria caríssima , 2,2 €…
Do outro lado da marginal que une a capital a Miramar, há mais um restaurante, o Foodland (do Turismo de Goa) e também hotel, uma pastelaria, a Canapé, grupo   hoteleiro de grande dimensão que existe por todo o estado. É, por conseguinte, uma rua muito importante, onde os pregões das peixeiras, vendedoras de hortaliças, vendedores de baldes e outras alfaias de plástico, se misturam com a buzina da bicicleta do padeiro. Que, vejam lá, começou a entregar o pão à nossa porta quando viu a minha mulher com um pé elástico. Gentil, o homem. Gentil, o procedimento.
É, como já compreenderam, uma rua com pedigree. Embora com poucos passeios, o que em Goa é absolutamente natural, são os que sobrevivem às monções e nos quais é mais perigoso  peotonar do que na beira da road, vincando olimpicamente o destemor do cidadão e confiando na boa vontade e na falta de pontaria dos condutores. Estes, além disso, são verdadeiros malabaristas, funâmbulos num tráfego diabólico e ao som triunfal das buzinas de todas as espécies, tonalidades, decibéis et aliut. Há passadeiras, é certo; mas pouco falta para multar os temerosos que as tentem utilizar para atravessar uma qualquer road.
Porquê uma tal opção galharda e valente? Os suspeitos passeios, esses sim, são um perigo constante, armadilhados, traiçoeiros, esventrados. As monções têm as costas largas. As chuvas são permanentes, ou quase, de acordo com fontes fidedignas e presenciais e as alturas das águas atingem por vezes os 30/40 centímetros; donde os lancis são altíssimos, onde alpinistas conceituados teriam o maior êxito. E as sarjetas, entupidas até mais não, recusam-se honestamente a escoar o OH2 pluviométrico e sujo.
Fico a imaginar a saga trágico-marítima dos riquexós durante a estação chuvosa. Penso até que veículos tão prestimosos deverão nessas ocasiões possuir como equipamento adicional  - boias. Para flutuar, está visto; mas também de salvação. A propósito, no princípio da minha rua há uma praça desses triciclos pretos e amarelos, fabricados por uma tal Bajaj que deve ter resultados espampanantes, a julgar pela miríade de tais engenhocas rodoviárias que quais enxames se espalham por todo este imenso subcontinente, Goa incluída, como é óbvio. O CEO dessa frota já nos conhece e apenas chegamos, faz-nos sinal para aguardarmos do nosso lado, que o riquexó mais próximo atravessa a road e vem tomar-nos como passageiros.
E até já não é preciso acertar previamente o valor da corrida, prática costumeira: daqui a Pangim são setenta rupias. E se o digno condutor é goês e ouve que a passageira é também patrícia, de Raia, então, sessenta. Já estou convencido de que, perante esta prática deve haver uma maçonaria dos goeses. Mas, claro, não o digo, guardo a convicção no mais recôndito de mim e ando de riquexó a preço regional. Sou um pacló, um branco, bem o sei, mas a minha patroa é de Salcete no Sul, gente boa, e o condutor também é daqueles lados, quase vizinho. Não são como os de Bardez, deus os criou mas mal fez…
Na frente da minha casa (que é um apartamento porreiríssimo, como já disse) estão os Bobby Apartments, num segundo andar dos quais vive uma família de pai, mãe, filha (uns 13 anos) e filho (talvez uns dez). O chefe tem uma vespa, da marca Hero, indiana como o sari. Há-as aos montes, no caso presente os Gates, de todos os modelos, feitios, cores e sei lá que mais. Fazem parte da ciclópica família Motobike, incluindo-se nela motorizadas e motos. Ontem, vi-os sair, aperaltados – por certo iam a casamento, baptizado, quejandos. Os quatro na Hero. Já vi seis. Estes nossos vizinhos são comedidos.

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE JANEIRO DE 2014

GRALHAS SEM GRALHAS

Por Antunes Ferreira 
Ontem, caí ou melhor recaí na asneira, feiras: fui à Feira do Algodão, era o último dia do certame que decorreu aqui mesmo ao lado, ou seja a uns quatrocentos metros da rotunda de Gaspar Dias, que hoje é Daias. O i é ai, como se recordam os que têm umas luzes ainda que incipientes do English do terceiro ano do liceu. Incauto mas paciente ouvi relatar as maravilhas apresentadas, a magnífica oportunidade de comprar mais barato, o último dia é a ocasião indicada, os feirantes estão a tentar despachar a mercadoria antes de emalar a trouxa. Fui. Fomos. 
De acordo com a Indira – a Costa, esposa do Carminho, colega da Raquel no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque, já desaparecido, ou seja no plural, o Capitão-Mor e o liceu – esta era muito diferente das outras por que eu já passara e por isso não valia a pena torcer o nariz. Guardei, portanto, para outra oportunidade a torcedela. Confesso: pequei, sem perdão nem bula. À primeira, cai quem quer – mas à nonagésima segunda só os burros ou os distraídos. Por mais que me digam o contrário creio que me considero integrando o grupo último… 
Já estivera, ao longo dos muitos anos em que venho andando por Goa, em outras feiras, também com algodão, mas não só, e tiradas a papel químico (deve ainda haver gente que se recorda do que é) umas das outras. Para dar um exemplo, junto, apenas, umas quantas: Anjuna, Arporá, esta nocturna, Margão, Mapuçá. Já chega, não necessito de explicar que se trata das localidades onde elas decorrem. Mas, esta é diferente neste particular. Acontece no Campal, antes mesmo de Miramar e a caminho de Dona Paula. Ou seja na zona chique de Pangim. Feira fina é realmente outra coisa. 
Uma feira é uma feira, aqui ou na rotunda do Relógio, em Kuala Lumpur, Banguecoque, Bruxelas ou em A dos Cunhados. Muitos vendedores, bastantes candidatos a compradores, mirones em barda, um que outro agente da autoridade, honestidade 9,6%., marosca 54,7 %, ingenuidade 41,7 % e outros componentes com as percentagens correspondentes ao método de Hondt. Ressalve-se um que outro caso e creio que este , não sendo excepção, é pelo menos paradigmático. Uma feira, por aqui é um mundo de mini pormenores, ainda que não sejam surpresa. 
As coisas não são tão simples como parecem. Por vezes, o estofo das pessoas é pior do que o dos bancos dos automóveis com o prazo de validade ultrapassado; mas no caso em curso não se pode dizer que a Feira do Algodão fosse uma decepção. Além dos tecidos propriamente ditos, incluindo os saris multicolores , havia uma panóplia de artigos diversos de espantar um santo ou o Vishnu que é mau como as cobras. De resto, este deus tem enroladas ao pescoço, aos braços e correlativos diversas serpentes. A figura é porém adorada não vá os ofídios tecê-las. 
As senhoras estavam nas suas sete quintas, isto é várzeas, não havia expositor que lhes escapasse. O grupo era constituído pelas já citadas Raquel e Indira Costa, e também pela Tina Viegas, esposa do Ivo, outro colega da minha caríssima metade. Apalpavam os materiais expostos, este algodão é tão suave que mais parece seda, as cores parecem seguras, por vezes a tinta é um tanto suspeita, kitlé (quanto é) aqui, kitlé acolá, com muitas discussões de preços, muitas vezes usando os vendedores máquina de calcular para que não haja enganos - sempre lamentáveis. 
Coabitando com o algodão, há cabedais diversos, carteiras de couro verdadeiro, não é plástico, veja, isqueiro aceso na pele curtida do animal não arde, bugigangas em metal amarelo – abundam os budas, os elefantes, as lâmpadas, os crocodilos, os ganeshes e os cristos e até a Senhora de Fátima . Pulseiras e colares, nem falar, tantos são. Na banca ao lado há os produtos artesanais de Cachemira, os papiê-machês, as caixas, as caixinhas, os sahkris (as gôndolas do lago Dal) e, desafiando o nome do certame, as sedas polícromas:; só faltam as house.boats (as casas barcos) certamente por falta de espaço. E o haxixe, pelo menos às claras. 
Recordo-me de, já lá vão uns bons anos, em Shrinagar, uma das duas capitais do estado que continua a ser discutido entre a Índia e o Paquistão, o ministro chefe (primeiro ministro só no Governo Central), Sheique Abdalah , durante um almoço que me oferecera, me perguntou se eu já tinha experimentado o haxe. Respondi-lhe que não, nunca me metera em tais assados, ao que ele me respondeu que dois ou três cigarros por dia não faziam mal, bem pelo contrário, até davam saúde. Tente, tente, recomendara-me - mas eu não tentei. Feitios.
Fechada a parentética, volte-se ao mercado. De seguida havia os brinquedos de madeira, os patos que grasnam quando “andam” nas suas quatro rodas, as galinhas que põem ovos, os reco-recos, os piões, convivendo com as cordas de saltar com punhos no material lenhoso, as casinhas regionais, os jogos educativos, até um ábaco elementar, para os putos aprenderem a fazer contas e compras. Singularmente descobri um triciclo, todo de pau polido e uma scooter desta feita pintada. Aliás, motos, motociclos, scooters e correlativos são mais do que as mães nas ruas e estradas.
A peregrinação feminil arrastava-se por via das buscas minuciosas, das negociações fiduciárias, das comparações algodonais, das cores, dos acabamentos dos saris, dos seus bordados, penso que este é mesmo a fio de ouro (não é, mas parece), das blusinhas do vestuário tradicional da Índia e dos modelos cristãos, vestidos, saias, blusas, calças para senhoras, e ao invés do calçado típico, sapatos de corte ocidental, sandálias e até botas de tacão alto. Uma inundação de roupas e sapatos que nem vos conto.
Ah, já me esquecia da Valentina Tereskova, uma jovem russa que sabia dizer ok e thank you em inglês e pouco mais - mas que era o que podem ver na gravura, nela acompanhada por uma miudinha que “adoptara “ a termo certo. Isto explicou-me o nosso condutor privativo desde há sete anos, o Premanand em tradução livre do infantil concani ou konkani como agora se escreve. O Premanand já faz parte da mobília (e da família), é hindu, casado, com uma filha que vamos conhecer em breve. A cara-metade, essa , já a conhecêramos há dois anos.
Repetiam-se as doses para gentlemen de todas as cores e feitios a condizer com a cor da pele de cada um. Eu abstive-me, pois já mandara fazer, naturalmente por medida dois fatos de meia estação, umas calças e quatro camisas de manga comprida que me tinham custado a enormidade de 230 euros, mais cêntimo, menos cêntimo, o que me parecera caríssimo, a vida é feita de alegrias mas também de contrariedades, 
Resumindo. Vim para fora do enorme pavilhão da feira, com mais de setenta ventoinhas, pelo menos as que contei sem garantia. Para não vir de mãos vazias comprei um cinto King Kong size, ou seja a minha medida, o que é difícil de encontrar. Três euros e poucos cêntimos de cabedal. Acabei assim a minha Feira. Não acabei, não senhor. À saída encontrava-se um vendedor de aperitivos diversos, mas com um denominador comum: o picante. Adquiri uns quantos de cinco qualidades, 300 gramas cada saco de plástico pesado cuidadosamente em balança de Robervale. Um euro e oitenta cêntimos – uma gastadeira.
As senhoras saíram, comentando as mercas e porque torna e porque deixa e etc. Jurei, para mim mesmo, acautelando a minha integridade física arriscada por possível agressão marital, que não voltaria a cair na esparrela feiral. Decisão irrevogável-temporal. Até à próxima feira.

Galinha voadora

O Santosh é o empregado de mesa do restaurante George com mais pinta. Os outros são meros comparsas e olham-no de soslaio. Já o conheço  - e ele a mim – há quase  oito anos, começou então por dizer uns sins e uns nãos em Português macarrónico, a que depois acrescentou  o clássico como está, o bom dia, o obrigado e (muito) pouco mais. Sempre que entrávamos no estabelecimento e ele dava conta disso comunicava o facto ao patrão e saía Amália Rodrigues ou o rancho folclórico de Santa Marta de Portuzelo. Simpático.

No George - que fica na praça da Igreja - há comida goesa de três estalos; atrevo-me a dizer que no domínio do caril, do sarapatel, do balchão, dos croquetes é o melhor de cá. Sem grandes espaventos, mas a publicidade que faz nos sacos de plástico é absolutamente verdadeira: the best sea food always fresh. Este ano o Santosh alargou o seu vocabulário e as frases em Português: Faz muita calor. Quer gelo? Agora? Depois? Sorpatel muita bom. A lingua roasted está grande boa. Esperimenta os croquetes; nas sextas há batatshop. E os liver da galinha  também está boa. Vou oferecer-lhe, antes de voltar para Lisboa, um livrinho que já comprei e que ensina umas coisas de português, inglês e concani. O rapaz merece. Só não sei se sabe ler...

Curiosamente conheci a autora, a D. Silvette D’Sá Mesquita e a sua filha Cheryl aqui mesmo no George. Tenho em minha casa em Lisboa um exemplar que adquiri aqui há dois anos, mas o meu concani persiste em ser uma lástima. Porém, já sei dizer sim ou seja ôi e não, que é Kitlé poiça?, quanto custa? E cossó assai?, Como está? A preguiça, aliás congénita, a falta de persistência no estudo, mas, sobretudo, falta de prática ajudam a explicar o meu fracasso; mas também a Raquel não pesca nada, esqueceu o que só usava para falar com as criadas. As classes, pois claro, à mistura com as castas. No resto, era só o português. A prática mantém-se ainda hoje. Faz-me comichão, mas passa-me. E já que vou falar em militares cito o ditado calino-castrense sobre as escoriações: isso incha, desincha e passa.

No primeiro andar (aqui em Pangim e por toda a Goa há o costume dos melhores restaurantes serem nesse piso, não sei porquê) a sala tem AC – não,não se trata de ser antes de Cristo – é ar condicionado. Os preços são bem acessíveis, digo até baratos; um almoço para nós dois e um Amigo fica por cerca de dez euros, ou menos. Há por esta capital restaurantes mais caros e mais sofisticados. Desde o Motil Mahal, com um porteiro de bigodaças, até ao Aroma, passando pelo Uper House, pelo Ritz e pelo Sree Punjab. Mas, são sobretudo de cozinha indiana.


Já lá vão uns bons dias fomos almoçar ao George já citado, com o Ivo Viegas e a sua Tina já regressados a Lisboa, ou melhor a Queijas onde moram. Numas três mesas ao lado da nossa falava-se português castiço, com alguns vocábulos mais vernáculos. Averiguei quem eram os sujeitos e descobri, um tanto admirado, que tinham sido soldados no tempo dos Portugueses e até ficaram prisioneiros. Grupo patusco, bem disposto, em que se integrava também uma Senhora, esposa de um dos ex-militares. Andavam à roda dos setentas anos, mas cheios de vitalidade e boa disposição.

Conversa pra cá, conversa pra lá e deram-me os nomes e as moradas, bem como se deixaram fotografar quando lhes disse quem era e que iria publicar a sua caprichosa estória neste blogue. Enfim, tudo numa boa. O Santosh estava nas suas sete quintas e transformara-se em grafonola despejando português safável, antevendo bakshishes diversos e avultados. Explico: são gorjetas e têm origem árabe, são usadas em todos os países muçulmanos. O império dos Shah dominou a Índia e esta palavra é uma verdadeira herança.

Registei, portanto, os nomes dos visitantes. Deles aqui ficam alguns. Joaquim Isidoro Santos, da Atalaia¸ João Leocádio Gomes, Santo Antão do Tojal, Sabino Godinho Saturnino, Alpiarça, António dos Santos Neto, Montemor-o-Velho. Eram oito, mas não apontei todos. Fizeram-se umas saúdes com cerveja, uísque e gin; eu fiquei-me pela fresh lime soda, a doutora Alice Nobre não me permite mais. Desgraças... Uns estiveram presos no campo de prisioneiros de Pondá, outros em Alparqueiros. Mas todos, apesar dos transes por que passaram, unânimes: Goa é uma terra bendita, por isso aqui estão de viagem.

O Salazar ia-nos fodendo, mas o maior político foi um Senhor chamado Nerhu que impediu que fossemos trucidados. Ele, o Governador Geral general Vasalo e Silva e o patriarca D. José Alvernaz. Não fossem eles e a coisa podia ter dado um banho de sangue pois o Botas dissera até à última gota. Mas, assim, safámo-nos, os indianos não nos trataram mal, os goeses foram porreiraços, levavam-nos cigarros, comida picante e boa, sabão. Claro que não eram todos, mas eram muitos, muitos – e muitas.

Por isso aqui vinham em romagem de saudade, rever “as paisagens deste Paraíso”, reencontrar alguns velhotes amigos que ainda falam português, beber uns copos de feni e de  urraca, bebidas que não encontram em Portugal. E, quase em surdina face à satisfação deles fui perguntando o que fariam se encontrassem os seus carcereiros. “Íamos tomar umas bebidas, éramos todos militares, só que com  fardas e armas diferentes...” E, de lado, o Leocádio: “com as guerras só ganham os graúdos; os mais pequenos são sempre quem paga as favas...”.

Era tempo de despedidas, nós ficávamos eles seguiam viagem, uma peregrinação, “é tão bom voltarmos cá”. E, chiça !, só mais tarde descobriria que as fotos que tirara aos viajantes estavam mais tremidas do que se tivessem apanhado um susto. Uma merda impublicável. Entrementes, o nosso Santosh ia empochando as bakshishes, satisfeito da vida, um maná em rupias não cai do céu todos os dias. Homem bons os portugueses, vem mais e eu muito bem do dinheiro. Lá fora, o calor aperta. A igreja branqueia no alto da sua escadaria. A malta da pesada, ou seja o nosso grupo, na cerveja, no uísque e no gin tónico. E eu a fresh lime soda. Porra! A vida está cheia de injustiças.  

SÁBADO, 29 DE MARÇO DE 2014

GRALHAS SEM GRALHAS - O Senhor Sabe Tudo

Por Antunes Ferreira

É uma sala recheada de mobília indo-portuguesa, um aparador precioso, cadeirões magníficos, uma espreguiçadeira desenhada pelo Senhor que me recebe e veste, descontraído, calções e camisa de manga curta, É toda desmontável, esclarece, com uns poucos parafusos, basta desenrosca-los e já está, mandei doze ou treze para Portugal, vêm cá goeses de férias e pedem-me para as encomendar e enviar. As recordações vogam por ali, reflectidas nos quadros que povoam as paredes. Uma osga, plácida e imóvel, espera talvez mosquito para o pequeno-almoço.


Um brasão do Estado Português da Índia também está pendurado numa delas. Ontem e hoje misturam-se sem brigar com imagens de Santo António e Ganeshes; convivem. Com o Holi a rapariga deixou-me a comida já feita, vou vivendo sozinho até que desça à tumba. E não me aborreço, tenho sempre coisas para fazer, não posso estar parado. Lá fora o barulho, os tambores, a gente pintada de várias cores, da cara ao vestuário, sem esquecer o cabelo, brincando, berrando, pulando, é um dia especial, o Carnaval hindu, meio pagão meio santo, enquanto a bebedeira não toma conta dos foliões. É o Holi e está tudo dito.


Percival Noronha já fez 90 anos, confessa-o sorrindo, mas está de memória perfeita, explanação clara, desfia anos como quem desfolha as pétalas do malmequer, bem-me- quer, finta o tempo, sabe tudo, A Raquel é filha do director da Alfândega, o Carlos Melo, bom homem, competente na Raia, tinha uma bela casa de família agora reconstruída mas já não é que era. Conta as contas do rosário goês, conhece as famílias, enfim, as suas desditas e por aí fora: é omnisciente e omnipresente, um deus enraizado na terra. Ouço-o desbobinar a História e apenas lhe faço uma que outra pergunta. Responde logo. Um espanto!


Quem me levou à casa dele, nas Fontaínhas, a Alfama de Panjim, foi o Zito Menezes, médico aposentado, sportinguista ferrenho, bué da fixe, de quem já falei noutras ocasiões. Foi colega da Raquel durante os sete anos do Liceu Nacional Afonso de Albuquerque e conhece perfeitamente Percival. Aliás, falou-lhe na semana passada da nossa visita ao que ele acedeu, Gosto de receber pessoas, de falar com elas e nós a ouvi-lo, a Raquel também alinhou na visita, quase não respiro face ao que ouço e vejo.


O Senhor desculpe-me, estou um tanto surdo, e puxa a orelha para ouvir melhor, o ruído dos holiões é catastrófico, mas mesmo assim, vai relatando o que aconteceu no tempo dos Portugueses e depois. Caso elucidativo que desmente a versão criminosa posta a circular no tempo salazarento. Recordo a declaração do ministro da Presidência Correia de Oliveira, aliás o Correio do Oliveira como então dizíamos na galhofa. Segundo ele, tinham morrido três mil e mais umas centenas de militares na defesa do solo sagrado da Roma do Oriente, a Pátria fora miseravelmente atacada e conquistada pela invasão das tropas indianas do pandita, o que era igual a bandita, bandido.


O Diário de Notícias publicou em caixa a mentira do regime. E também referiu o bombardeamento dos depósitos de combustíveis em Vasco da Gama, com incontáveis baixas na população. Estava-se a 22 de Dezembro de 1961, eu começara a namorar com a Raquel em 22 de Agosto e pude acompanhar os dias de angústia que ela vivia. Os seus pais e cinco irmãos moravam ali. Podiam estar todos mortos, de acordo com os noticiários falsos e os comentários pseudo-patrióticos que circulavam.


Foi então que me lembrei de recorrer aos meus amigos e vizinhos no Bairro do Restelo, os Solano de Almeida, cujo pai, comandante dos TAIP, Transportes Aéreos da Índia Portuguesa, cometera o feito de descolar com o seu Douglas DC 4, da pista bombardeada do aeroporto de Dabolim. Tinha demonstrado uma perícia, um sangue-frio e um destemor realmente notáveis. Na casa dele e depois de eu ter explicado ao que vinha, o piloto informou-me das mentiras que circulavam em  Portugal e que até conhecia os meus futuros sogros, encontrando-se a família de perfeita saúde. Não gostava do regime salazarento, sabia. Claro que a Raquel passou o Natal muito mais sossegada. E eu também.


Agora e aqui, Percival  limita-se a concordar: foi mesmo assim. Pergunto-me quem é este homem de saberes imensos, cronista, viúvo, orador, combatente de muitas causas, repositório vivo de noventa anos de História, completados em 22 de Junho do ano passado? Recorro a notas biográficas publicadas no semanário “Goan” em inglês e por mim adaptadas em Português. Tenho de agradecer à publicação, de outro modo teria de encher-me de paciência para seleccionar dados sobre ele, tantos são os que existem. O que em férias seria de criticar e de eu ser considerado, pelo menos, maluco…


 “Percival não é um cronista do passado, ele é o passado, Em 1961, quando a Índia recuperou Goa, ele era funcionário, tendo chegado a Chefe do Gabinete de Informação, que reportava directamente ao último Governador Português, Vassalo Silva, com quem viajou por inúmeras vezes para Damão e Diu. A sua tranquila eficiência e capacidade de elaborar e aplicar regras, fê-lo osubir na hierarquia sob o Governo indiano tornando-se chefe do Protocolo Oficial no final dos anos setenta e, em seguida, subsecretário de departamentos-chave - saúde, indústria, informação e turismo.

 Realmente continua a ter um talento especial, com raízes ancestrais nas aldeias de S. Matias em Mala de onde veio sua mãe Aurora Vital e Noronha  e Loutolim, a vila de seu pai Antonio José de Noronha. Este partiu para o Uganda com Percival, então quase bebé, e voltou em 1929, quando  tinha sete anos; deu entrada no Liceu para completar a sua escolaridade”.

 Durante a nossa conversa apontou a herança de Goa que se encontra em ruínas. Posso dizer que Percival é a herança que ainda está de pé, e sublinha que os arquivos de Goa estão a perder-se e em estado decadente, bem como os edifícios antigos que não foram persevados. Mas, perante o seu saber e a sua lucidez, ele continua a ser um arquivo permanente que acentua como Goa desliza em plano inclinado e se torna uma sombra do seu passado.

 Saio da casa de Percival no bairro das Fontaínhas perfeitamente esmagado; alias, saímos os três, o Zito, a Raquel e eu. Descemos os degraus que nos tinham levado ao primeiro andar e lá em cima Percival como bom anfitrião despede-se, acenando cordialmente. Pede-me para voltar, tem um livro para me oferecer. Claro que voltarei. Na parede do cimo do patamar da escada tem uma roda de madeira também trabalhada. É a última informação que nos dá, trata-se de uma peça que mandou fazer e é uma reprodução das que em pedra fazem parte de templos hindus que são carros.

 Cá fora os foliões hindus bem pintados continuam a  carnavalar o Holi. Por toda a Goa este é um dia especial e feriado, as lojas fecham e, singularmente apenas umas quantas de hindus se mantêm abertas. No resto da Índia também. Nas Fontaínhas, bairro castiço, onde os habitantes são particularmente católicos, de cultura e tradições lusas, estes festejos vão durar todo o dia, parando apenas amanhã que é dia de trabalho. Três moças, alias bem bonitas, perguntam-nos sorridentes se nos deixamos pintar. Faço um gesto evasivo, mas respondo-lhes um não, também sorrindo. Soltam gargalhadas cristalinas e berrantes como os saris que usam – e afastam-se. Goa  também é   isto.

QUARTA-FEIRA, 12 DE MARÇO DE 2014

'Deu borem dis dium'



Por Antunes Ferreira
Deu borem dis dium. Ou seja, bom dia, em concani.

NA MINHA casa ouve-se o mar, as ondas marulhando a uns duzentos metros, ou seja quase aqui à porta. No quintal mesmo ao lado cresce um coqueiro – olha que novidade – uma árvore que dá pão, uma pãozeira, portanto, uma mangueira e muitas buganvílias. Nuns trezentos metros da minha rua, caso curioso, existem três cabeleireiros, um dos quais unissexo, dois restaurantes, um bar, três ourives, duas agências bancárias, um consultório médico e uma farmácia. Só falta a loja do caju. Mas, não se pode ter tudo. Para todos os gostos, enfim. Frutas pão e mangas ainda não estão prontas como aqui se diz, em vez de maduras que nós usamos em Portugal.
A propósito, abro aqui uma parentética para dar conta de episódio ocorrido em Luanda, quando estávamos por lá. A Raquel tinha tido os partos do Miguel e do Paulo em Lisboa, na clínica de São Miguel, sob o cuidado atento do Prof. Castro Caldas e o acompanhamento posterior pelo primo e padrinho de casamento, Prof. Mário Cordeiro, aliás primo da minha consorte e pediatra de mão cheira. Recordo que fora, em casa dele que tinha descoberto a miúda que viera de Goa alegadamente para estudar na Faculdade de Ciências: Mas, creio que me caçar e depois casar.
Então, na capital angolana onde tínhamos produzido o terceiro descendente ou terceira, na altura não havia ecografias, e quase findos os nove meses habituais, fomos no carrito que comprara, um pequenino Mitsubichi Colt (anos de colonialismo já me tinham permitido entrar pelo desvario…) à Casa de Saúde do SNECIPA onde o/a rebento/a viria ao Mundo. Enquanto a mina consorte – tinha casado comigo, daí o nome – subia ao primeiro andar para mirar a enfermaria, eu ficara no minúsculo boguinhas acompanhado dos dois primeiros infantes: o Miguel com cinco anos e o Paulo com três.
O primogénito era desde sempre o mais crédulo e ingénuo, o seguinte caracterizava-se pela esperteza um tanto saloia, mandando bocas aqui e ali e contestando quase sempre as normas maternas e paternas. E foi o Miguel que me perguntou, ó Pai, onde foi a mãe?, ao que respondi (estávamos ainda nos anos sessenta) que a mãe tinha ido ao local onde iria buscar o mano. Silêncio. Desceu a Raquel com umas trombas elefantinas. É mau? Perguntei-lhe. É péssimo. Nisto, o Miguel, ó mãe então o mano? E o Paul, galharda e convictamente, não vês que ele ainda não estava pronto!!! Fecho o parêntesis.
Voltando à minha rua; é por ela que se chega à praia de Miramar, daí os murmúrios do  Índico. Passa-se pelo colégio Dhempé, antes Dempó, uma enorme instituição mandada construir pelo magnata do mesmo nome. Rapazes e raparigas de todas as classes, desde a primária até aos cursos superiores são fotocópias de todos os estudantes do orbe terráqueo; a mochila é fundamental. E os namoricos vão aumentando, ao invés do que se passava no antigamente.
No fundo da rua – aqui é road em vez de street – está plantado um templo hindu, moderno, onde para as pessoas entrarem têm de se descalçar. O mesmo acontece nos consultórios de médicos hindus, escritórios de advogados e outros. Fui ao estaminé do Dr. Ashish Surlenkar onde ouvi uma estória para dar que pensar, eu conto, o clínico é uns anos mais velho do que a Raquel e conversoucom[HAF1] igo num Português escorreito.
Tinha lá ido por via de um problemazito intestinal, nada de grave, e depois ficámos a conversar e fiquei sabendo que ele completara o curso na Escola Médica de Goa e pretendia depois ir para Lisboa fazer uma série de cadeiras para a equiparação, “quando aconteceu aquilo, a libertação , como aqui dizem…” Pasmei. Da boca de um hindu ouvir uma tal frase, 53 anos depois dos acontecimentos de Dezembro de 61, deixou-me espantado; mas calei-me e começámos a falar do Benfica, como bom sportinguista retorqui-lhe, rimo-nos – e não me cobrou  a consulta , aliás seria caríssima , 2,2 €…
Do outro lado da marginal que une a capital a Miramar, há mais um restaurante, o Foodland (do Turismo de Goa) e também hotel, uma pastelaria, a Canapé, grupo   hoteleiro de grande dimensão que existe por todo o estado. É, por conseguinte, uma rua muito importante, onde os pregões das peixeiras, vendedoras de hortaliças, vendedores de baldes e outras alfaias de plástico, se misturam com a buzina da bicicleta do padeiro. Que, vejam lá, começou a entregar o pão à nossa porta quando viu a minha mulher com um pé elástico. Gentil, o homem. Gentil, o procedimento.
É, como já compreenderam, uma rua com pedigree. Embora com poucos passeios, o que em Goa é absolutamente natural, são os que sobrevivem às monções e nos quais é mais perigoso  peotonar do que na beira da road, vincando olimpicamente o destemor do cidadão e confiando na boa vontade e na falta de pontaria dos condutores. Estes, além disso, são verdadeiros malabaristas, funâmbulos num tráfego diabólico e ao som triunfal das buzinas de todas as espécies, tonalidades, decibéis et aliut. Há passadeiras, é certo; mas pouco falta para multar os temerosos que as tentem utilizar para atravessar uma qualquer road.
Porquê uma tal opção galharda e valente? Os suspeitos passeios, esses sim, são um perigo constante, armadilhados, traiçoeiros, esventrados. As monções têm as costas largas. As chuvas são permanentes, ou quase, de acordo com fontes fidedignas e presenciais e as alturas das águas atingem por vezes os 30/40 centímetros; donde os lancis são altíssimos, onde alpinistas conceituados teriam o maior êxito. E as sarjetas, entupidas até mais não, recusam-se honestamente a escoar o OH2 pluviométrico e sujo.
Fico a imaginar a saga trágico-marítima dos riquexós durante a estação chuvosa. Penso até que veículos tão prestimosos deverão nessas ocasiões possuir como equipamento adicional  - boias. Para flutuar, está visto; mas também de salvação. A propósito, no princípio da minha rua há uma praça desses triciclos pretos e amarelos, fabricados por uma tal Bajaj que deve ter resultados espampanantes, a julgar pela miríade de tais engenhocas rodoviárias que quais enxames se espalham por todo este imenso subcontinente, Goa incluída, como é óbvio. O CEO dessa frota já nos conhece e apenas chegamos, faz-nos sinal para aguardarmos do nosso lado, que o riquexó mais próximo atravessa a road e vem tomar-nos como passageiros.
E até já não é preciso acertar previamente o valor da corrida, prática costumeira: daqui a Pangim são setenta rupias. E se o digno condutor é goês e ouve que a passageira é também patrícia, de Raia, então, sessenta. Já estou convencido de que, perante esta prática deve haver uma maçonaria dos goeses. Mas, claro, não o digo, guardo a convicção no mais recôndito de mim e ando de riquexó a preço regional. Sou um pacló, um branco, bem o sei, mas a minha patroa é de Salcete no Sul, gente boa, e o condutor também é daqueles lados, quase vizinho. Não são como os de Bardez, deus os criou mas mal fez…
Na frente da minha casa (que é um apartamento porreiríssimo, como já disse) estão os Bobby Apartments, num segundo andar dos quais vive uma família de pai, mãe, filha (uns 13 anos) e filho (talvez uns dez). O chefe tem uma vespa, da marca Hero, indiana como o sari. Há-as aos montes, no caso presente os Gates, de todos os modelos, feitios, cores e sei lá que mais. Fazem parte da ciclópica família Motobike, incluindo-se nela motorizadas e motos. Ontem, vi-os sair, aperaltados – por certo iam a casamento, baptizado, quejandos. Os quatro na Hero. Já vi seis. Estes nossos vizinhos são comedidos.

SEGUNDA-FEIRA, 20 DE JANEIRO DE 2014

GRALHAS SEM GRALHAS

Por Antunes Ferreira 
Ontem, caí ou melhor recaí na asneira, feiras: fui à Feira do Algodão, era o último dia do certame que decorreu aqui mesmo ao lado, ou seja a uns quatrocentos metros da rotunda de Gaspar Dias, que hoje é Daias. O i é ai, como se recordam os que têm umas luzes ainda que incipientes do English do terceiro ano do liceu. Incauto mas paciente ouvi relatar as maravilhas apresentadas, a magnífica oportunidade de comprar mais barato, o último dia é a ocasião indicada, os feirantes estão a tentar despachar a mercadoria antes de emalar a trouxa. Fui. Fomos. 
De acordo com a Indira – a Costa, esposa do Carminho, colega da Raquel no Liceu Nacional Afonso de Albuquerque, já desaparecido, ou seja no plural, o Capitão-Mor e o liceu – esta era muito diferente das outras por que eu já passara e por isso não valia a pena torcer o nariz. Guardei, portanto, para outra oportunidade a torcedela. Confesso: pequei, sem perdão nem bula. À primeira, cai quem quer – mas à nonagésima segunda só os burros ou os distraídos. Por mais que me digam o contrário creio que me considero integrando o grupo último… 
Já estivera, ao longo dos muitos anos em que venho andando por Goa, em outras feiras, também com algodão, mas não só, e tiradas a papel químico (deve ainda haver gente que se recorda do que é) umas das outras. Para dar um exemplo, junto, apenas, umas quantas: Anjuna, Arporá, esta nocturna, Margão, Mapuçá. Já chega, não necessito de explicar que se trata das localidades onde elas decorrem. Mas, esta é diferente neste particular. Acontece no Campal, antes mesmo de Miramar e a caminho de Dona Paula. Ou seja na zona chique de Pangim. Feira fina é realmente outra coisa. 
Uma feira é uma feira, aqui ou na rotunda do Relógio, em Kuala Lumpur, Banguecoque, Bruxelas ou em A dos Cunhados. Muitos vendedores, bastantes candidatos a compradores, mirones em barda, um que outro agente da autoridade, honestidade 9,6%., marosca 54,7 %, ingenuidade 41,7 % e outros componentes com as percentagens correspondentes ao método de Hondt. Ressalve-se um que outro caso e creio que este , não sendo excepção, é pelo menos paradigmático. Uma feira, por aqui é um mundo de mini pormenores, ainda que não sejam surpresa. 
As coisas não são tão simples como parecem. Por vezes, o estofo das pessoas é pior do que o dos bancos dos automóveis com o prazo de validade ultrapassado; mas no caso em curso não se pode dizer que a Feira do Algodão fosse uma decepção. Além dos tecidos propriamente ditos, incluindo os saris multicolores , havia uma panóplia de artigos diversos de espantar um santo ou o Vishnu que é mau como as cobras. De resto, este deus tem enroladas ao pescoço, aos braços e correlativos diversas serpentes. A figura é porém adorada não vá os ofídios tecê-las. 
As senhoras estavam nas suas sete quintas, isto é várzeas, não havia expositor que lhes escapasse. O grupo era constituído pelas já citadas Raquel e Indira Costa, e também pela Tina Viegas, esposa do Ivo, outro colega da minha caríssima metade. Apalpavam os materiais expostos, este algodão é tão suave que mais parece seda, as cores parecem seguras, por vezes a tinta é um tanto suspeita, kitlé (quanto é) aqui, kitlé acolá, com muitas discussões de preços, muitas vezes usando os vendedores máquina de calcular para que não haja enganos - sempre lamentáveis. 
Coabitando com o algodão, há cabedais diversos, carteiras de couro verdadeiro, não é plástico, veja, isqueiro aceso na pele curtida do animal não arde, bugigangas em metal amarelo – abundam os budas, os elefantes, as lâmpadas, os crocodilos, os ganeshes e os cristos e até a Senhora de Fátima . Pulseiras e colares, nem falar, tantos são. Na banca ao lado há os produtos artesanais de Cachemira, os papiê-machês, as caixas, as caixinhas, os sahkris (as gôndolas do lago Dal) e, desafiando o nome do certame, as sedas polícromas:; só faltam as house.boats (as casas barcos) certamente por falta de espaço. E o haxixe, pelo menos às claras. 
Recordo-me de, já lá vão uns bons anos, em Shrinagar, uma das duas capitais do estado que continua a ser discutido entre a Índia e o Paquistão, o ministro chefe (primeiro ministro só no Governo Central), Sheique Abdalah , durante um almoço que me oferecera, me perguntou se eu já tinha experimentado o haxe. Respondi-lhe que não, nunca me metera em tais assados, ao que ele me respondeu que dois ou três cigarros por dia não faziam mal, bem pelo contrário, até davam saúde. Tente, tente, recomendara-me - mas eu não tentei. Feitios.
Fechada a parentética, volte-se ao mercado. De seguida havia os brinquedos de madeira, os patos que grasnam quando “andam” nas suas quatro rodas, as galinhas que põem ovos, os reco-recos, os piões, convivendo com as cordas de saltar com punhos no material lenhoso, as casinhas regionais, os jogos educativos, até um ábaco elementar, para os putos aprenderem a fazer contas e compras. Singularmente descobri um triciclo, todo de pau polido e uma scooter desta feita pintada. Aliás, motos, motociclos, scooters e correlativos são mais do que as mães nas ruas e estradas.
A peregrinação feminil arrastava-se por via das buscas minuciosas, das negociações fiduciárias, das comparações algodonais, das cores, dos acabamentos dos saris, dos seus bordados, penso que este é mesmo a fio de ouro (não é, mas parece), das blusinhas do vestuário tradicional da Índia e dos modelos cristãos, vestidos, saias, blusas, calças para senhoras, e ao invés do calçado típico, sapatos de corte ocidental, sandálias e até botas de tacão alto. Uma inundação de roupas e sapatos que nem vos conto.
Ah, já me esquecia da Valentina Tereskova, uma jovem russa que sabia dizer ok e thank you em inglês e pouco mais - mas que era o que podem ver na gravura, nela acompanhada por uma miudinha que “adoptara “ a termo certo. Isto explicou-me o nosso condutor privativo desde há sete anos, o Premanand em tradução livre do infantil concani ou konkani como agora se escreve. O Premanand já faz parte da mobília (e da família), é hindu, casado, com uma filha que vamos conhecer em breve. A cara-metade, essa , já a conhecêramos há dois anos.
Repetiam-se as doses para gentlemen de todas as cores e feitios a condizer com a cor da pele de cada um. Eu abstive-me, pois já mandara fazer, naturalmente por medida dois fatos de meia estação, umas calças e quatro camisas de manga comprida que me tinham custado a enormidade de 230 euros, mais cêntimo, menos cêntimo, o que me parecera caríssimo, a vida é feita de alegrias mas também de contrariedades, 
Resumindo. Vim para fora do enorme pavilhão da feira, com mais de setenta ventoinhas, pelo menos as que contei sem garantia. Para não vir de mãos vazias comprei um cinto King Kong size, ou seja a minha medida, o que é difícil de encontrar. Três euros e poucos cêntimos de cabedal. Acabei assim a minha Feira. Não acabei, não senhor. À saída encontrava-se um vendedor de aperitivos diversos, mas com um denominador comum: o picante. Adquiri uns quantos de cinco qualidades, 300 gramas cada saco de plástico pesado cuidadosamente em balança de Robervale. Um euro e oitenta cêntimos – uma gastadeira.
As senhoras saíram, comentando as mercas e porque torna e porque deixa e etc. Jurei, para mim mesmo, acautelando a minha integridade física arriscada por possível agressão marital, que não voltaria a cair na esparrela feiral. Decisão irrevogável-temporal. Até à próxima feira.

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